quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A Ideia de Felicidade


Baudouin de Contes

Para todos os gregos, qualquer que seja a sua moral, a procura da felicidade era a finalidade essencial da vida humana. Assim como ainda é hoje o traço distintivo da civilização ocidental. A língua grega clássica para dizer "feliz" tem dois adjectivos : eu-daimôn (ter bom génio por oposição a kako-daimôn, ter mau génio) e makarios. Enquanto to makariôs zen serve para designar a vida de felicidade inalterável dos deuses imortais, é eudaimônia que designa a felicidade dos homens, na tradição, tanto platónico-aristotélica, na tradição estóica ou na epicuriana. É beatitudo que vai servir para traduzir eudaimônia tanto em Cícero como em Descartes. Para os moralistas da antiguidade  eu-daimônia não pode existir fora de uma activitade inseparavél da sua finalidade e que encerra nela, como a música, a sua própria finalidade. Isto é o contrário do que Hegel chamaria "alienação ".
A ideia de felicidade é o traço distintivo da civilização ocidental: para os chineses, a palavra xingfu, que se traduz por felicidade, associa, no grafismo de caracteres, a ideia de azar et de prosperidade através do favor celeste. Mas ideia da felicidade parece ausente do pensamento confuciano, apesar da comparação sedutora que François Julien tentou sobre este tema entre o pensamento de Kant e o de Mencius. Então, eudaimônia é, por oposição a felicidade como sorte e prosperidade, e também como o sabia Adam Smith, e Henry Sidgwick ( o grande representante da corrente utilitarista à época vitoriana) eudaimônia é, em filosofia antiga, um conceito moral ou ético.
Este conceito conserva o mesmo estatuto moral na tradição racionalista que vem do humanismo renascentista, especialmente em Descartes e Espinosa. É na filosofia moral de Kant que se assiste à destituição moral da ideia de felicidade  no momento em que felicidade começa a apresentar-se como conceito político como apelo à "felicidade pública" ou "do povo".
É nesta perspectiva que se inscreve a corrente utilitarista que vai contribuir para fazer da procura da felicidade o principal axioma antropológico das teorias económicas que nos governam ainda hoje. As teorias económicas de inspiração neo-liberal partilham secretamente este preconceito como os seus adversários hereditários: as grandes utopias que se formaram no Século dezanove. Assim, esta é a questão que podemos discutir, por exemplo, à luz da filosofia política de John Rawls : a finalidade da política é instituir a felicidade ou preferentemente a justiça ?
A idéia de felicidade ( em português) é a mesma idéia de bonheur (em francês)? La formação do termo bonheur, conhecido desde o século XII, singulariza a língua francesa que neste ponto não teve uma evolução muito cartesiana. Alain, o filosofo françês da terceira Republica, retoma por sua conta a concepção cartesiana de beatitude (em françês ), palavra que Descartes julgava preferível ao uso de bonheur (felicidade), mas que ainda hoje se continua a usar.
A língua inglesa tende a singularizar-se pelo emprego de happiness. Os autores ingleses modernos, por exemplo Stuart Mill, ou a Declaração de Independência dos Estados Unidos recorreram à palavra happiness e não a felicity. Em bonheur, o heur deriva do francês antigo euir, ( chance/sorte ), que corresponde a uma deformação de augur (augurum), que em nada se relaciona com hora. Happiness é formado sobre happen, “ocorrer” em português. Do mesmo modo que gliick em alemão, bonheur em francês ou happiness em inglês, todas estas formas dão a idéia de que aquilo que acontece advém por sorte ou azar.
A felicidade, ou le bonheur, esta idéia ou estas duas idéias, remetem a um conceito filosófico que tem lugar importante na reflexão ética dos filosófos gregos, a eudaimônia. Hoje esta palavra traduz-se geralmente por bonheur em francês, happiness em inglês e, de modo quase exclusivo, por palavras que derivam da palavra felicitas em latim, na maioria das outras línguas latinas. Félicité corresponde em francês a um arcaísmo caído em desuso, salvo para designar a forma superlativa de bonheur, do mesmo modo com felicity em inglês. Com este duplo entendimento, a palavra serve para designar a forma mais completa da felicidade, a felicidade absoluta ou suprema. Na maioria das línguas latinas ou latinizadas, ao contrário, salvo nos casos em que se deve recorrer aos adjectivos formados pela palavra fortuna o seus derivados adverbiais como fortunately ou "afortunadamente", emprega-se mais correntemente a palavra que se formou a partir de felicitas. Entretanto a palavra eudaimônia traduzia-se antigamente, em latim, por uma palavra que tem raízes na maioria das línguas latinas ou latinizadas, como o inglês. Beatitudo (“beatitude”  em português e em françês) formou-se sobre beatus. E beatus aquele que tem todos os seus desejos satisfeitos, de maneira que nada mais deseja, pois nada mais tem a  desejar. Mas isto quer dizer que a vita beata pode exigir uma ascese que só se torna possível através da filosofia, pois que, apesar de nada mais ter a desejar, isso não quer dizer que se trate da conquista de bens, mas antes se interroga sobre a natureza do bem. O sábio sabe tornar-se capaz de nada mais querer desejar. A vita beata é uma conquista moral que só está ao alcance do sábio. Felix, em oposição a beatus, torna-se de uso vulgar e designa aquele que venceu et tem seus negócios prósperos, porque é favorecido pela fortuna: adfortunam felix. "Felix ", foi deste modo que Sylla se fez chamar por seus concidadãos, quando pretende trazer a prosperidade ao povo romano, e que instaura o culto da deusa Felicitas. Porque felicitas deriva das mesma raiz indo-européia que felare (mamar),femina (mulher),fecunditas , et que não significa felicidade porque designa antes a fertilitade, a fecundidade. Uma árvore que dá frutos é felix. Aquele que é feliz é o que tudo conseguiu e tem negócios prósperos, aquele que é favorecido pelos deuses.
Os autores cristãos é que vão usar o substantivo formado sobre beatus. Sabe-se o papel que a palavra "beatitude" tomou no latim escolástico numa perspectiva geralmente teológica, de tal maneira que chamaremos um bispo de "vossa beatitude". Foi Cícero que introduziu esta palavra para traduzir eudaimônia, herdada pelos autores cristãos. Séneca não recorre a essa expressão, mas a beatus, e fala de vita beata. Descartes, comentando este último em sua correspondência, em francês, com a princesa Elizabeth, fez, dando razões filosóficas, apelo à beatitude (em francês), assim como Spinoza em sua Ética.
Enfim, para terminar este inventário, que não é exaustivo, convém igualmente levar em conta uma língua que se torna filosófica sob a pena de Kant. O alemão se separa realmente das línguas latinas e do inglês, tanto naquilo que tem de latim e de germânico, pelo emprego de Gliick e de Seligkeit. A primeira destas palavras evoca a sorte, a fortuna. É entretanto afetada na tradução de eudaimônia da mesma forma que se traduz em francês por bonheur. No entanto, como e segundo é afetado pela tradução defelicitas, deveria traduzir-se em francês pela palavra félicité. É menos raro em alemão, pois félicité e felicity servem também para designar uma forma elevada de felicidade (bonheur). Por outro lado, como selig pertenece ao linguajar religioso, podendo significar santo ou bem-aventurado (bienheureux), é também à tradução de beatitudo que ficou afetado. Pode-se encontrar enfim, em Kant, por exemplo, que as duas palavras compõem uma única: Gliickseligkeit. E é este termo que Kant faz corresponder ao conceito de eudaimônia. Entretanto, já que esse conceito corresponde a uma forma superior de felicidade, pode acontecer que Kant se aproxime mais à palavra Seligkeit, como os filósofos gregos denominavam autarkeia, e que ele denomina Selbstgnugsamkeit. Ele opõe então Seligkeit ou "beatitude" a Gliickseligkeit felicidade (bonheur) no sentido em que aquela implica uma independência completa em face das tendência e necessidades.
Mas a história de uma palavra não é a Historia. Foi no final do século dezoito na época das revoluções francesa e americana, que a eudaimônia, sob o nome de felicidade (happiness ou bonheur),  se tornou um conceito político e social. Disso são testemunhas tanto a Declaração da Independência dos Estados Unidos, assim como a famosa proclamação de Saint-Just. Que "a felicidade seja uma idéia nova na Europa", como indiscutivelmente refere Saint Just ao povo, a felicidade do povo. E, sendo assim, ela se torna uma idéia revolucionária, no sentido coletivo, um dos fins essenciais de toda política ao lado da Justiça. Foi neste sentido, apesar da conotação fortemente individualista, adquirida na América do Norte, que na nossa época se entende a expressão " pursuit of happiness " (procura/perseguição de felicidade) e que a Declaração da Independência já havia tornado um direito inalienável que todo governo tem a missão de garantir. Jefferson que fora redator da Declaração da Independência, em um de seus textos que a antecipa, não hesitava em mencionar a "procura/perseguição de felicidade pública" (pursuit of public happiness). Ainda que se tenham abstido de dar ao povo um sentido étnico ou de designar com esse termo (povo) uma classe social, a felicidade do povo e a felicidade pública não significam nada de diferente. É também por isso que aos seus olhos a questão de felicidade, no sentido social do termo, se coloca no terreno do interesse comum, assim come de common sense. Thomas Paine procura definir as condições entre as quais a força do governo e a felicidade dos governados podem conjugar-se entre si.
Até esta época o conceito de felicidade nas suas diversas palavras, não conseguiu alcançar sua eminente dignidade, na tradição ocidental a não ser no espaço de escolha que a teologia cristão lhe reservou, mas sobretudo antes disto, no status central que os filosófos pagãos da Antiguidade lhe concederam sob sua ética, principalmente depois que foi travado o declino da teologia, assim como os filósofos racionais do século dezessete que lhe atribuíram uma perspectiva estreitamente ética ou moral. Para Thomás de Aquino a beatitude se define como o fim ultimo da vida humana. Como tal, isto é perfeita, ainda que correspondendo a um fim natural perseguido nesta vida, ela consiste na visão da essência de Deus. Ela é "transcedente ao homem e à natureza ". Ela só pode ser celestial. A perspectiva adotada por Descartes sobre a questão da felicidade (bonheur) corresponde assim a uma ruptura deliberada, ainda que expressa com prudência. Na moral, que ele desenvolve principalmente em sua correspondência, reserva para esta questão o lugar essencial e primordial que lhe havia sido dado pelos filósofos da Antiguidade, em sua ética. Descartes, afirmando colocar-se sob o mesmo ponto de vista de que "os filósofos antigos nada sabiam da beatitude sobrenatural" renova uma tradição que apenas tinha em vista a "felicidade terrestre" e não pretende falar a não ser do "maior e mais sólido contentamento da vida" que ele identifica como "o bom uso do livre arbítrio" o Diferentemente de Descartes, o pensamento de Spinoza é téológico e afirma-se como teológico. A diferença entre ambos encontra-se, no entanto, já que é racional e moderna, no prolongamento da tradição clássica que ela renova, não correspondendo menos a uma ruptura, mais acentuada ainda com a teologia cristã. Entretanto, é necessário que se preste atenção de que se trata, palavra por palavra, da inversão de uma fórmula de Thomás de Aquino , uma declaração intempestiva, e provocante do ponto de vista retórico, sobre a qual se conclui que a Ética: "Beatitudo non est virtutis praemium, sed virtus ipsa", (a beatitude não é prémio da virtude mas a própria virtude).
Seria simplista concluir, ao constatar esta ruptura, que Descartes e Spinoza tenham secularizado o conceito de felicidade e que tenham contribuído dessa forma para a promoção política de que será objeto no final do século seguinte. Deve-se hoje evitar a representação monolítica do racionalismo moderno, que após Burke, mas com fins bem mais suspeitos e fortemente partidários, e a corrente de pensamento dito neo-liberal assim como o heideggeriano ou a teoria "desconstrutivista" que tendem a fixar a discussão. Para uns trata-se de fazer prevalecer a lógica do interesse sobre a moral assim como sobre a justiça, e outros pretendem arruinar os ideais do racionalismo critico como sendo os únicos que dão oportunidade à modernidade de se prolongar e à humanidade de progredir ou de sobreviver. As problemáticas cartesiana e de Spinoza da felicidade são fundamentalmente estranhas, em sua visão, à problemática política da felicidade que se vê emergir no final do século Dezoito. De um lado a questão se mantém num quadro rigosamente ético. Do outro trata-se do advento do pensamento político que dominará os dois séculos que findaram <até Rawls. Este, através da corrente utilitarista que pretende como ele diz: "a sua formulação mais clara e mais acessível com Sidgwick " (o grande representante da corrente utilitarista à época vitoriana) não se prende com efeito a nenhuma outra que não seja a uma filosofia política da felicidade. Não é esta a felicidade que deva constituir a finalidade do pacto social mas é necessário colocá-la como fundamento da democracia, como idéia de justiça na sua acepção moral: "asfairness". Indiscutivelmente as proclamações revolucionárias americanas e francesas, relativas à felicidade, são contemporâneas da formulação teórica em que esta idéia se torna o objeto de Jeremy Bentham, numa perspectiva hedonista que explica o lugar que suporta a noção de prazer na teoria econômica. E é na corrente utilitarista, assim como na época pós-Bentham, que esta concepção deve ter sido elevada à classe daquilo que Aristóteles chamava Ciência Arquitectónica!
Mas as revoluções Francesa e Americana são também contemporâneas da filosofia moral de Kant. A Critica da Razão Prática foi publicada em 1788. Este texto completa o projecto cartesiano e o radicaliza, pois anuncia uma concepção da moral fundada sobre a autonomia do sujeito. A moral não pede nada à transcendência, a não ser quando o sujeito moral se proclame ele mesmo transcendente porque ele é soberanamente legislador e só obedece à lei universal, por ele promulgada. A filosofia moral de Kant é, por outro lado, fundadora de uma tradição que em Inglaterra e América do Norte se chama continental, apesar de tudo o que John Rawls lhe é devedor, como ele próprio sublinhou. Esta tradição não teve um papel menos importante que a tradição utilitarista e ambas se desenvolveram numa relação de franca oposição. Assim, assiste-se na Critica da Razão Prática a uma revisão da questão do status ético da idéia de felicidade (Gliickseligkeit). Por esta destituição revolucionária, a filosofia moral de Kant prolonga ao mesmo tempo o humanismo cartesiano e dele se afasta. Há como efeito, em Kant duas doutrinas de felicidade. De um lado ela é moralmente desqualificada porque ela não poderia, em caso algum, constituir o móbil da acção moral. De outro lado, ela o constituiu como objeto de uma reabilitação aparente que conduz à doutrina dos postulados da Razão Prática, garantindo por fim, se assim se pode dizer, o acordo da virtude e da felicidade dentro de um progresso indefinido. Mas há que se considerar o facto de que a felicidade não se apresenta, do ponto de vista fenomenólogico “avant la lettre”, a não ser como uma simples esperança, a qual não é mais que a esperança de uma simples consequência. A felicidade deixou de ser uma causa, um fim ou mesmo um efeito. Não é a felicidade que determina a acção moral, nem é isso que ela tem em vista, nem é isso que ela produz.
Seria necessário, sem dúvida, no momento em que os revolucionários americanos e franceses apresentaram à filosofia uma questão inédita, a questão da felicidade do povo, que a felicidade fosse destituída do status ético que lhe fora confiado na Antiguidade sob o nome de eudaimônia, e na modernidade sob o nome de beatitude. Tomou-se necessário que fosse desqualificada como finalidade moral a fim de tornar-se um conceito antropológico. Mas justamente o que não está claro na tradição utilitarista como nas teorias econômicas que ela inspirou foi a função epistemológica da idéia da felicidade, noção híbrida que se apresenta tanto como um valor incontestável,  também, como um objeto, para uma antropologia que está ainda a nascer. Porque seria desejável, afinal, já que a filosofia moral lhes deixou esta idéia, que aqueles que se orgulham de conhecer os meios de realizar a felicidade pública digam, também, o que ela é. Naturalmente que uma tal questão é irônica no sentido etimológico e socrático do termo e que ela não dá resposta a quem a interroga. Seja ausência de resposta, ou uma resposta aguardada, não teremos que nos contentar com a idéia de justiça?